Lei de Privacidade e IA na China: Impactos e Evolução

TL;DR: Entre 2020 e 2025, a China implementou legislações abrangentes de privacidade de dados e IA, incluindo a Lei de Proteção de Informações Pessoais (PIPL) e a Lei de Segurança de Dados (DSL), estabelecendo um modelo regulatório que equilibra proteção individual contra empresas, mas preserva o acesso estatal aos dados. Este arcabouço, inspirado parcialmente no GDPR europeu, impõe requisitos rigorosos de conformidade para empresas estrangeiras enquanto avança a estratégia chinesa de liderança global em IA.

Takeaways:

  • A China criou um regime de “privacidade autorizada” que protege dados contra abusos corporativos mas preserva instrumentos de vigilância governamental, diferindo fundamentalmente da concepção ocidental de privacidade.
  • Empresas estrangeiras enfrentam desafios significativos de compliance, incluindo localização de dados, avaliações de segurança para transferências internacionais e representação local obrigatória.
  • A PIPL concede aos cidadãos chineses direitos explícitos sobre seus dados pessoais, incluindo acesso, correção, restrição de processamento e exclusão em determinadas circunstâncias.
  • O plano “Next Generation AI Development” estabelece metas ambiciosas para transformar a China em líder mundial de IA até 2030, com regulamentações éticas e técnicas específicas para algoritmos e tecnologias como deepfakes.
  • A abordagem regulatória chinesa começa a influenciar outros países, oferecendo um modelo alternativo ao ocidental para governança de dados e IA.

Privacidade e Inteligência Artificial na China: Análise Jurídica do Período 2020-2025

Em um mundo cada vez mais digitalizado, a China emergiu como um dos países mais ativos na regulação de dados e inteligência artificial. Entre 2020 e 2025, o governo chinês promulgou legislações abrangentes e delineou estratégias ambiciosas que posicionaram o país na vanguarda da governança digital global – mas com características distintamente chinesas.

Este artigo oferece uma análise aprofundada do arcabouço jurídico chinês para privacidade e IA, explorando suas implicações para empresas internacionais, cidadãos chineses e o equilíbrio entre segurança nacional e direitos individuais.

Evolução Recente das Legislações Chinesas em Privacidade e Proteção de Dados

O período entre 2020 e 2025 marcou uma transformação significativa na abordagem chinesa à proteção de dados. Em 2021, a China implementou duas legislações fundamentais que estabeleceram um arcabouço legal abrangente: a Lei de Proteção de Informações Pessoais (PIPL) e a Lei de Segurança de Dados (DSL).

A PIPL, que entrou em vigor em 1º de novembro de 2021, representa a primeira lei chinesa de proteção de dados pessoais com caráter verdadeiramente abrangente. Inspirada em muitos aspectos no Regulamento Geral de Proteção de Dados (GDPR) europeu, esta legislação estabelece princípios claros para o tratamento de informações pessoais e garante direitos fundamentais aos titulares de dados.

Complementando a PIPL, a DSL (em vigor desde 1º de setembro de 2021) amplia o escopo da proteção para incluir dados não pessoais, com foco especial naqueles relevantes para a segurança nacional e o interesse público chinês.

Essas duas leis complementares não surgiram isoladamente. Em 2020, a China adotou um novo Código Civil que já consagrava a proteção da privacidade e de dados pessoais como um direito da personalidade, estabelecendo as bases para o desenvolvimento subsequente da legislação específica.

Durante este período, a regulamentação chinesa se aprofundou com diversos atos administrativos complementares, como medidas sobre algoritmos de recomendação e tecnologias de “deepfake”, aplicando os princípios da PIPL e DSL a tecnologias específicas de IA.

Conceitos Fundamentais nas Leis Chinesas de Privacidade (PIPL)

A PIPL introduziu conceitos e princípios fundamentais que transformaram a abordagem chinesa à proteção de dados pessoais:

Alcance Extraterritorial

Um aspecto crucial da PIPL é seu alcance extraterritorial. A lei se aplica não apenas a entidades dentro do território chinês, mas também a organizações estrangeiras que processam dados de indivíduos na China para:

  • Oferecer produtos ou serviços a esses indivíduos
  • Analisar comportamentos de pessoas na China
  • Outras situações previstas em leis ou regulamentos

Esta característica alinha a PIPL com o GDPR europeu, estendendo a jurisdição chinesa sobre operações de dados que ocorrem além de suas fronteiras.

Definição Ampla de Informações Pessoais

A PIPL define “informações pessoais” de maneira abrangente, incluindo qualquer dado relacionado a pessoas naturais identificadas ou identificáveis, excluindo apenas dados completamente anonimizados. Informações consideradas “sensíveis” recebem proteção adicional, incluindo dados biométricos, crenças religiosas, saúde, finanças, localização e informações de menores de 14 anos.

Princípios de Tratamento e Consentimento

A lei estabelece princípios gerais como legalidade, legitimidade, necessidade e boa-fé no tratamento de dados. O consentimento informado, voluntário e explícito é exigido para o tratamento de dados pessoais, com requisitos ainda mais rigorosos para dados sensíveis.

A PIPL garante aos titulares direitos abrangentes, incluindo:

  • Saber sobre o tratamento de seus dados
  • Acessar e obter cópias de seus dados pessoais
  • Solicitar correções de informações incorretas
  • Restringir ou recusar o tratamento
  • Transferir dados para outro provedor
  • Solicitar a exclusão de seus dados em determinadas circunstâncias

É importante notar que, diferentemente do GDPR, a PIPL não contempla o “legítimo interesse” do controlador como base legal autônoma para o tratamento de dados, potencialmente tornando-a mais restritiva nesse aspecto.

Estratégia Nacional de Inteligência Artificial – “Next Generation AI Development Plan”

Em paralelo ao desenvolvimento de seu arcabouço de proteção de dados, a China estabeleceu uma estratégia ambiciosa para se tornar líder mundial em inteligência artificial. O “Next Generation Artificial Intelligence Development Plan”, anunciado em 2017, projeta a China como potência global em IA até 2030.

Este plano estabelece metas em etapas, incluindo objetivos específicos para 2025:

  • Avanços significativos em teorias fundamentais de IA
  • Desenvolvimento de tecnologias e aplicações de IA em áreas-chave
  • Estabelecimento inicial de leis, regulamentos e normas éticas para IA

O plano reconhece explicitamente a necessidade de desenvolver marcos legais e éticos paralelamente ao progresso tecnológico em IA, refletindo uma abordagem que busca equilibrar inovação e controle.

Entre 2020 e 2025, vimos concretizações importantes dessa estratégia, como:

  • Em 2019, a Associação Chinesa de Normas de IA publicou princípios éticos para IA
  • Em março de 2022, entraram em vigor as Regras sobre Serviços de Recomendação Algorítmica

Estas iniciativas demonstram o compromisso chinês com um desenvolvimento de IA que seja, nas palavras oficiais do plano, “seguro, confiável e controlável”, reforçando a ideia de soberania tecnológica e segurança.

Análise Comparativa: China vs. Marcos Legais Internacionais

Para compreender a singularidade da abordagem chinesa, é valioso comparar a PIPL e a DSL com marcos internacionais como o GDPR europeu e o CCPA (California Consumer Privacy Act).

PIPL vs. GDPR

A PIPL e o GDPR compartilham pilares fundamentais, incluindo:

  • Exigência de uma base legal para o tratamento de dados pessoais
  • Garantia de direitos do titular como acesso e apagamento
  • Deveres de transparência e segurança para os controladores

No entanto, existem diferenças significativas:

  • A PIPL é mais rígida quanto a bases legais, não contemplando o “legítimo interesse” de forma autônoma
  • As transferências internacionais de dados são significativamente mais restritivas na PIPL, exigindo supervisão prévia das autoridades chinesas
  • A estrutura de governança é mais centralizada na China, com a Administração do Ciberespaço da China (CAC) exercendo controle primário

Em termos de sanções, a PIPL fixa penalidades administrativas máximas de até ¥50 milhões (aproximadamente US$7,7 milhões) ou 5% do faturamento anual, comparáveis às do GDPR. Além disso, a PIPL menciona o impacto no “social credit” de empresas infratoras, um mecanismo sem equivalente no sistema europeu.

PIPL vs. CCPA

Comparada ao CCPA da Califórnia, a PIPL é significativamente mais abrangente e restritiva:

  • O CCPA foca principalmente em transparência e controle do consumidor sobre seus dados comerciais
  • A PIPL impõe uma base legal obrigatória para qualquer tratamento (opt-in por padrão)
  • O CCPA aplica-se apenas a empresas de grande/médio porte ou data brokers, enquanto a PIPL abrange qualquer entidade que trate dados pessoais

Esta análise comparativa revela que, embora a PIPL dialogue com padrões internacionais em muitos aspectos técnicos, ela diverge estrategicamente para garantir controle soberano de dados e preservar as ferramentas de vigilância do Estado chinês.

Implicações para Empresas Estrangeiras (Negócios Internacionais e Compliance)

Empresas estrangeiras que operam na China enfrentam, desde 2021, um regime regulatório consideravelmente mais complexo e rigoroso. As implicações práticas são substanciais e multifacetadas:

Adequação Integral às Novas Leis

As organizações internacionais precisam adequar suas práticas à PIPL e DSL integralmente. Isso inclui:

  • Realizar avaliações de conformidade comparativas entre suas práticas atuais e os requisitos chineses
  • Implementar medidas técnicas e organizacionais para garantir compliance
  • Investir em infraestrutura local para localização de dados sensíveis

Um exemplo notório é a Apple, que desde 2018 armazenou dados do iCloud de usuários chineses em centros de dados na China operados por uma parceira local, antecipando-se às exigências que seriam posteriormente formalizadas pela PIPL.

Designação como Operadoras de Infraestrutura Crítica

Empresas de setores considerados sensíveis podem ser designadas como operadoras de infraestrutura de informação crítica (CIIO), enfrentando requisitos ainda mais rigorosos de segurança e localização de dados.

Novos Trâmites para Transferências Internacionais

As empresas estrangeiras enfrentam procedimentos burocráticos e contratuais adicionais para a transferência de dados para fora da China, incluindo:

  • Avaliações de segurança junto à CAC
  • Certificações de proteção de dados por instituições especializadas
  • Contratos-padrão aprovados pelo governo chinês

Estas exigências levaram muitas empresas a segmentar seus bancos de dados e criar fluxos separados para dados chineses, aumentando custos operacionais.

Representação Local Obrigatória

A PIPL exige que empresas estrangeiras sem presença física na China, mas sujeitas à lei por tratar dados de chineses (via internet), nomeiem um representante dentro do país (Art. 53). Esta exigência cria um ônus adicional para empresas digitais que atendem o mercado chinês remotamente.

O LinkedIn, por exemplo, encerrou sua versão local de rede profissional em 2021, citando o ambiente regulatório desafiador como um dos fatores para sua decisão.

O nível de dificuldade e custo para garantir conformidade pode desestimular empresas menores de operar no mercado chinês, potencialmente favorecendo grandes corporações com recursos para investir em compliance robusto.

Impactos para os Cidadãos Chineses e a Proteção de Seus Dados Pessoais

As novas leis de privacidade trazem benefícios tangíveis para os cidadãos chineses, representando uma resposta a um clamor público crescente por privacidade e segurança de informações.

Direitos Explícitos e Exercíveis

Os cidadãos chineses ganharam direitos explícitos que podem exercer, como:

  • Solicitar cópias de seus dados pessoais
  • Corrigir informações incorretas
  • Limitar o processamento de seus dados
  • Exigir a exclusão de informações em determinadas circunstâncias

Grandes companhias tecnológicas chinesas, como Tencent e Alibaba, criaram portais específicos de requisições de direitos para usuários em resposta à PIPL, facilitando o exercício desses direitos.

Proteção de Grupos Vulneráveis

A PIPL e normas correlatas tentam proteger grupos vulneráveis e situações sensíveis, como dados de crianças e informações financeiras. A lei exige consentimento dos pais para processamento de dados de menores de 14 anos e estabelece salvaguardas adicionais para informações sensíveis.

Privacidade por Design

A aplicação da PIPL indica que o cidadão comum experimentou melhorias em termos de “privacidade por design” em serviços digitais domésticos. Órgãos reguladores chineses passaram a monitorar aplicativos móveis e punir aqueles que coletassem mais dados do que o necessário, resultando em práticas mais respeitosas à privacidade.

No entanto, a efetividade da lei depende de fatores como aplicação consistente, conscientização pública sobre direitos e acesso a canais eficazes de reclamação. O período entre 2020 e 2025 representa apenas o início da implementação deste novo regime.

Equilíbrio Dinâmico entre Segurança Pública, Vigilância Estatal e Direitos de Privacidade

Um dos aspectos mais fascinantes e complexos do regime chinês de proteção de dados é a tentativa de conciliar interesses aparentemente conflitantes: segurança pública, vigilância estatal e direitos individuais de privacidade.

Privacidade Autorizada

A China adota o que alguns analistas chamam de “privacidade autorizada”, onde o Estado define e restringe a esfera de privacidade conforme seus critérios de estabilidade e segurança. As leis protegem o cidadão comum do que poderia ser chamado de “voyeurismo corporativo”, mas deixam intactos os instrumentos de monitoramento governamental em larga escala.

Esta abordagem difere fundamentalmente da concepção ocidental de privacidade como direito fundamental inerente ao indivíduo e oponível primariamente contra o Estado.

Casos Ilustrativos

Alguns casos recentes ilustram as complexidades deste equilíbrio:

  1. Sistema de Códigos de Saúde em Henan: Funcionários locais adulteraram o sistema de saúde para impedir protestos, violando diretrizes de privacidade e uso de dados de saúde. Este caso demonstra que a PIPL e normas relacionadas fornecem base para responsabilizar abusos de dados mesmo por parte de autoridades, mas também revela a vulnerabilidade dos sistemas a manipulações com fins políticos.
  2. Apple e iCloud na China: A Apple armazenou chaves criptográficas de contas iCloud chinesas em servidores dentro da China, operados pela empresa estatal Guizhou-Cloud Big Data. Esta decisão reduziu a privacidade dos usuários frente ao governo, mas permitiu que a Apple continuasse oferecendo serviços no país. O caso ilustra a dificuldade do equilíbrio para empresas ocidentais de tecnologia.
  3. Didi Chuxing: Após seu IPO nos EUA, a empresa foi multada por violação de segurança de dados, demonstrando a importância de integrar considerações de segurança nacional chinesa no compliance corporativo.

Vigilância Seletiva

As cidades chinesas implementaram extensos sistemas de câmeras inteligentes para segurança pública, enquanto simultaneamente Shenzhen passou uma regulamentação proibindo empregadores de usarem câmeras para vigiar funcionários sem notificação. Esta aparente contradição exemplifica a seletividade do regime de privacidade chinês: proteção robusta em certas esferas, vigilância intensa em outras.

Os estudos de caso reforçam que, embora as empresas calibrem seu compliance e os cidadãos sintam alguns benefícios tangíveis, a retórica de proteção à privacidade convive com práticas de vigilância estatal intensa. A verdade reside em algum ponto entre um estado de direito em proteção de dados e um controle estatal abrangente da informação.

Conclusão: Um Modelo Único em Construção

Entre 2020 e 2025, a China construiu um arcabouço jurídico singular em matéria de privacidade de dados e inteligência artificial, combinando elementos de vanguarda com características próprias ditadas por sua estrutura política e objetivos estratégicos. A PIPL e a DSL representaram marcos fundamentais dessa evolução.

As leis chinesas de privacidade e IA demonstram que nenhum país é uma ilha regulatória. As referências ao GDPR na PIPL evidenciam a influência externa na formulação doméstica, ainda que adaptada às prioridades chinesas. Ao mesmo tempo, a abordagem chinesa começa a influenciar outros países, especialmente aqueles que buscam um modelo alternativo ao ocidental.

Os próximos anos serão decisivos para avaliar a maturação desse arcabouço: se os reguladores chineses conseguirão aplicar consistentemente as leis contra infratores, se os direitos dos indivíduos serão efetivamente exercidos e respeitados, e como a inovação em IA prosperará sob um manto regulatório que tenta guiá-la eticamente.

A China escolheu um caminho próprio, impondo restrições severas ao setor privado em prol dos indivíduos, enquanto reserva ao Estado a via livre na tutela maior dos dados – uma abordagem cujo impacto definitivo sobre sociedade, economia e liberdades ainda está em construção.


Fonte: China’s Personal Information Protection Law: A Blueprint for Global Data Governance? Mark Jia, Samm Sacks. Disponível em: https://www.chinafile.com/reporting-opinion/viewpoint/chinas-personal-information-protection-law-blueprint-global-data